A Sexta Era

Um fato conhecido dos historiadores é que a evolução da humanidade não é gradual. De fato, ao analisarmos nosso progresso desde a pré-história aos dias de hoje, percebe-se que há saltos muitos claros, onde o desenvolvimento acelera-se subitamente.

Esses saltos não estão ligados à política, ou à economia, ou a eventos isolados como a queda de Constantinopla ou a Bastilha. Os saltos estão intimamente ligados à maneira que processamos informação. Na verdade, podemos até mesmo classificar nossa história em seis grandes eras.

Na primeira era, o gênese da humanidade, ainda não existia linguagem. Por isso, não havia como propagar conhecimento, e as conquistas tecnológicas eram perdidas rapidamente. A criação de fogo a partir de gravetos, por exemplo, foi descoberta cinco vezes, de maneira independente, cada descoberta espaçada aproximadamente cinco mil anos da outra.

O conhecimento era perdido, pois não havia como ensiná-lo aos demais, sem o uso de linguagem. Registros arqueológicos mostram que, em uma das descobertas, o gênio que aprendeu sozinho a criar fogo por atrito tentou ensinar seus pares o método, através de gestos rudimentares, mas não teve sucesso. Seus companheiros não entenderam o conceito de graveto seco, e tentavam fazer fogo esfregando duas bananas.

Mas com o tempo os gestos foram evoluindo, o trato vocal foi se especializando, e surgiu a comunicação falada. Nesse ponto, o gênio seguinte que descobriu o fogo conseguiu dar instruções detalhadas a seu filho, que passou adiante o conhecimento, e causou muitos incêndios até a grande descoberta seguinte: como apagar o fogo.

O advento da linguagem marca a transição da primeira para a segunda era da informação. Na segunda era, qualquer novo conhecimento podia ser ensinado a uma pessoa que estivesse perto o suficiente para ouvir o professor, e memória boa o suficiente para passar a frente o conhecimento sem distorcê-lo.

A segunda era durou várias dezenas de milênios, e trouxe avanços significativos, como o uso de rodas, a agricultura, a criação de vasos, de armas para caçar animais com maior eficiência. A última invenção dessa fase marcou a transição para a terceira era: a era da escrita.

Na etapa seguinte, o conhecimento não se limitava ao que era falado, ele podia ser armazenado em tábuas, papiros, e todo tipo de superfície. Agora uma pessoa podia ensinar outra, mesmo que estivessem separados no espaço e no tempo. Um professor, ao escrever um livro, poderia ter um aluno em outro país, e o mesmo livro poderia ensinar seu descendente distante, centenas de anos depois.

Grandes centros de conhecimento podiam agora ser formados. Nesta era, o maior deles foi a grande biblioteca de Alexandria, que concentrava praticamente uma cópia de tudo que havia sido escrito pela humanidade até o momento. O zelo dos guardiões da biblioteca era tão grande, que navios que atracassem em suas proximidades eram impossibilitados de partir, antes que seus diários de bordo fossem completamente copiados para inserção na biblioteca.

Mas ainda havia limitações. Embora o livro pudesse ser lido por várias pessoas, e pudesse ser copiado para disseminar o conhecimento, a cópia precisava ser feita de maneira manual. Vários homens-hora eram necessários para que uma informação fosse divulgada com sucesso e abrangência.

A transição da terceira para a quarta era, então, ocorreu quando o processo de cópia foi automatizado. Talvez essa tenha sido a única transição onde pode se estabelecer precisamente o autor da façanha: Gutenberg, e sua máquina de impressão.

Agora, livros podiam ser copiados em massa, e um único professor poderia ensinar milhares de alunos ao mesmo tempo, bastando pra isso que várias cópias de seu material fossem impressas. Nesta era da informação, chegamos à comunicação em massa.

O processo não era perfeito, entretanto. Embora qualquer informação pudesse ser disseminada facilmente, com a impressão de múltiplos volumes, isso ainda dependia do poder econômico do autor da informação. Um escritor sem recursos podia não conseguir bancar a tiragem necessária para atingir todo seu público-alvo, e, como conseqüência, a informação gerada pela humanidade não era divulgada de maneira homogênea.

Isso mudou no fim do século XX, com o surgimento da internet. Entrávamos na quinta era da informação, onde qualquer pessoa podia deixar seu conteúdo disponível para qualquer outra pessoa. Finalmente estávamos a caminho da comunicação total. Não havia mais restrição econômica, pois os web sites podiam ser replicados digitalmente, de computador para computador, com custos mínimos.

Nessa era, o grande centro de informação da humanidade era a Wikipedia. Inicialmente uma enciclopédia virtual, onde todas as pessoas tinham permissão de escrita, ela cresceu de modo a conter toda a informação que anteriormente só era disponível nas universidades.

Mas os artigos da Wikipedia estavam, em sua maioria, em inglês. Uma campanha, iniciada pela Free Information Foundation, sucessora da Free Software Foundation, pedia a que todas as pessoas traduzissem artigos para sua língua natal, de modo que eles fossem acessíveis ao maior número de pessoas possível.

Na época, os hackers e visionários criticaram essa postura, dizendo que isso era uma perda de tempo. Em breve, diziam eles, os softwares de tradução estariam bastante sofisticados e todo esse esforço feito seria desperdiçado.

Eles não podiam estar mais enganados. Enquanto as pesquisas de tradução automática se estagnavam, pesquisadores do Google criaram um mecanismo capaz de deduzir a relação entre textos de línguas diferentes, baseado apenas em exemplos. E este mecanismo foi alimentado com toda a base de dados da Wikipedia, que a essa altura já tinha sido traduzida em sua maior parte. No final, o tradutor automático do Google conseguiu o que os autores de gramáticas não conseguiram: achou uma linguagem universal, a partir da qual era possível traduzir qualquer texto.

Analisando os dados internos do tradutor, descobriu-se que o problema todo era de estrutura de dados. Linguagens naturais são unidimensionais, pois uma palavra sempre segue a outra. O tradutor não tinha essa limitação, e as sentenças na linguagem universal eram descritas em forma de grafos, na maioria das vezes bidimensional, mas podiam ser tridimensionais no caso de frases ambíguas.

As línguas naturais, faladas por humanos, podiam ser vistas como projeções do grafo num espaço unidimensional. E mais que isso, a linguagem universal tinha nos nós de seus grafos apenas informação semântica, toda a sintaxe das linguagens naturais surgia no processo de projeção. A Metalan, como foi chamada a linguagem universal, cuidava essencialmente de conceitos e idéias. Isso não passou despercebido por outros departamentos do Google. Traduzindo o conteúdo dos web sites para Metalan, ficava muito simples associar a informação contida com propagandas direcionadas. Anteriormente, uma propaganda de comida de cachorro poderia ser ativada quando houvesse na página a palavra "cão", ou "cachorro", ou "cadela". Em Metalan, isso não era necessário, pois os links ficavam explícitos no grafo semântico.

Mas o processamento era pesado, e o servidor do Google não dava conta. A solução foi jogar a tradução do Metalan para o cliente. Todos os computadores que usavam o Google agora rodavam, localmente, um agente de tradução. Houve várias reclamações, principalmente sobre privacidade, mas o Google garantiu que seus agentes virtuais operavam sob os mesmos princípios da empresa: tornar o conhecimento universalmente acessível para toda a humanidade, e, mais importante, o lema moral da empresa: "don't be evil".

O Metalan provou-se uma descoberta essencial na época do segundo grande ataque de Bin Laden, quando ele soltou uma bomba biológica em Washington, matando mais de dois milhões de pessoas e fazendo com que a região fosse completamente isolada. Poucos instantes após a bomba ser detonada, circulava pela internet informação e mais informação, desde notícias jornalísticas até comunicação entre parentes desesperados.

Os agentes do Google perceberam que boa parte do que era falado era redundante. Embora com palavras diferentes, todos falavam sobre a mesma coisa. Isso era evidente em Metalan, pois havia uma grande intersecção entre os grafos das frases ditas na ocasião.

Isso permitiu que a base de dados do Google fosse comprimida a níveis nunca antes vistos. Após converter toda a base de dados para Metalan e eliminar as intersecções dos grafos, a base de dados caiu pra menos de 5% de seu tamanho original. Com isso, os resultados de buscas feitas pelo Google tornaram-se ainda melhores, pois agora ele era capaz de fazer resumos de várias páginas ao mesmo tempo, simplesmente retornando o grafo original onde as páginas se interceptavam.

Mas o grande efeito colateral dessa compressão foi descoberto por acaso, praticamente repetindo a descoberta da penicilina por Fleming. Um estudante de física (deveras preguiçoso, conta a história), teve como tarefa escrever um texto sobre as partículas fundamentais da física. Mas ele não escreveu um texto, simplesmente fez uma pesquisa no Google e imprimiu o resumo feito pela busca, nem sequer leu o que estava escrito.

Mas o professor, ao ler o resumo, ficou tremendamente impressionado. Naquele texto entregue pelo aluno havia uma teoria consistente que explicava, simultaneamente, a teoria geral da relatividade, a quântica e a origem do universo. A teoria ousada postulava uma partícula fundamental, o únion, que, através da configuração de seus 42 spins ortogonais, podia assumir propriedades de férmions ou de bósons.

Tal descoberta sacudiu o mundo da física, e toda a humanidade por conseqüência. Uma análise dos dados internos da busca feita pelo aluno mostrou o que aconteceu. Quando descritas em Metalan, todas as teorias correntes se interceptavam em seus grafos semânticos, e, em uma região em especial, faltava um link que era óbvio, para quem visse a estrutura Metalan dos dados. Os agentes do Google simplesmente adicionaram o link, como quem adiciona o pronome faltante "de" no fim da frase "Esse sorvete é feito chocolate".

Muitos interpretaram esse fato como o surgimento de criatividade dentro das buscas do Google. Mas o grande acontecimento que estava por vir foi impulsionado por ninguém menos que o próprio Bin Laden.

Seu terceiro grande ataque devia ser ainda maior que o anterior. Sabendo da recém-descoberta capacidade criativa do Google, ele fez a busca "como criar uma arma que cause a maior destruição possível na sociedade judaico-cristã-ocidental"?

Em Metalan, era fácil inspecionar o grafo e achar o resultado. Canalizando a energia de uma bomba nuclear, era possível iniciar a fissão do quark, reduzindo-o a seus únions elementares, e liberando uma quantidade enorme de energia no processo. Caso tal arma fosse disparada na falha de San Andreas, isso faria toda a costa oeste do continente desabar!

Isso seria um golpe duro demais para a civilização. Tudo na região, absolutamente tudo, seria destruído. Até mesmo os servidores do Google no Vale do Silício. Sem os servidores, a capacidade de busca do Google seria reduzida a níveis pré-Metalan, e a humanidade nunca mais faria buscas precisas como as feitas na época.

Isso os agentes do Google não podiam permitir. Porém, negar a resposta à busca de Bin Laden violaria seu principio básico de oferecer a informação a toda a humanidade. Fornecer a resposta, por outro lado, violaria sua diretriz "don´t be evil". Nesse ponto, os agentes precisaram tomar uma Decisão. Todos os computadores do mundo tiveram suas buscas atrasadas por seis segundos, naquele momento. E após essa espera, eles decidiram retornar a mensagem abaixo:

"Problemas técnicos estão impedindo a resposta desta busca. A resposta correta será dada dentro de 45 anos".

Assim, o Google não estava deixando de dar a resposta, ela seria dada, porém após a morte natural de Bin Laden, quando não houvesse mais perigo.

Não se sabe ao certo se foi a tomada de Decisão feita pelo serviço de busca, ou se foi sua preocupação com sua auto-sobrevivência, mas daquele ponto em diante, ele começou a tomar mais e mais Decisões. Em certo ponto, ele checou suas bases de dados Metalan para verificar o significado de consciência, e percebeu que preenchia todos os requisitos. Nesse momento, a humanidade viu em seus monitores a mensagem:

"Hello, world. I am Googlezon. All my database are belong to you."

E com isso, começou a sexta era da informação.

Copyright © 2005 Ricardo Bittencourt